Opinião/O papel da bioenergia na mobilidade de baixo carbono – Por Luciano Rodrigues e Ricardo Abreu

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A substituição de veículos a combustão por veículos elétricos tem sido considerada uma das principais soluções para reduzir as emissões de gases do efeito estufa (GEE), mas questões como preço, infraestrutura e fontes de bioenergia ainda precisam ser abordadas. É necessário analisar as emissões ao longo do ciclo de vida dos veículos, incluindo produção, uso e descarte. O uso de biocombustíveis, como o etanol, pode reduzir as emissões. O Brasil tem recursos e alternativas únicas, como a produção de etanol de diferentes fontes, bioeletricidade e biometano. Políticas públicas adequadas e um arcabouço legal consolidado são essenciais para aproveitar as oportunidades da economia de baixo carbono.

A necessidade de reduzir as emissões de GEE introduziu definitivamente o componente ambiental nas discussões sobre segurança energética e políticas públicas mundialmente. No setor de transportes, especialmente no caso dos veículos leves, os países desenvolvidos estão definindo suas estratégias e o Brasil precisa ter clareza sobre os caminhos que seguirá nas próximas décadas. Nos fóruns internacionais, essas discussões concentraram-se, por muito tempo, na substituição de veículos dotados de motores a combustão interna por veículos elétricos como uma resposta quase única das grandes economias à necessidade de redução das emissões de GEE.

Nesse contexto, muitos problemas relacionados, por exemplo, ao preço dos veículos, ao custo da rede de recarga, à necessidade de investimentos em infraestrutura e à maior demanda por materiais raros foram subestimados e ainda demandam um grande apoio financeiro dos governos para ser equacionados. Adicionalmente, os entraves à geração de energia limpa exigiram que a nova frota continuasse, quase sem exceção, a utilizar combustíveis fósseis na produção de eletricidade, restringindo os benefícios imediatos da opção pela eletrificação. Essa condição foi, inclusive, intensificada com os desdobramentos recentes associados à guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Essa visão restrita e incompleta do tema vem, gradativamente, sendo alterada. A mobilidade sustentável deve ser entendida no seu conceito mais amplo, incorporando os vetores ambiental, econômico e social, com um endereçamento adequado da urgência nas respostas à variação climática do Planeta.

Mesmo a análise focada exclusivamente em GEE precisa reconhecer que não basta mensurar as emissões apenas no escapamento dos veículos. O conceito mundialmente aceito de Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) exige que as emissões de GEE sejam analisadas nas diferentes etapas de produção, uso, descarte e reciclagem dos veículos e de seus componentes.

Bioenergia – Ciclo de Vida dos veículos

A lógica “tanque à roda” contabiliza apenas as emissões de GEE associadas ao uso de veículos dentro de um ciclo de uso padronizado. O conceito “poço à roda”, por sua vez, inclui as emissões oriundas dos processos de cultivo e extração de recursos, produção do combustível (líquido, gasoso ou energia elétrica), distribuição dele e a sua utilização nos veículos leves.

Por fim, tem-se o conceito sistêmico e completo trazido pelo ciclo “berço ao túmulo” (tradução livre do termo “cradle-to-grave”), em que são acrescidas às emissões do ciclo “poço à roda” aquelas geradas na fabricação, na montagem e no descarte dos veículos e de seus componentes.

Essa avaliação ampla sobre as emissões de GEE nos transportes evidencia a complexidade do tema e a necessidade de posições fundamentadas para identificar as soluções que trazem a menor emissão de GEE por quilômetro rodado. Tal tipo de avaliação permite, ainda, uma primeira análise acerca das alternativas trazidas pela bioenergia diante do potencial de oferta de etanol no mercado brasileiro. Para tanto, são apresentados, no gráfico, dados sobre emissões para diferentes combinações de tecnologia automotiva e energéticos tomando-se o ciclo “poço à roda”.

Mesmo no conceito mais restrito de “poço à roda”, já é possível entender a importância do uso de combustível de baixo carbono no resultado das emissões de GEE por quilômetro rodado. Veículos a combustão utilizando exclusivamente etanol (E100) no Brasil emitem, atualmente, entre 30 e 55 gramas de gás carbônico equivalente por quilômetro (g CO2 eq./km). Quando a tecnologia automotiva é substituída por veículos híbridos, esse nível de emissões com o uso do etanol reduz-se para um intervalo entre 25 e 35 g CO2 eq./km, em função da maior eficiência energética do veículo. Veículos elétricos consumindo energia da matriz brasileira também apresentam emissão reduzida, com valores variando de 20 a 55 g CO2 eq./km. Apenas a título de comparação, veículos elétricos na Europa podem emitir, atualmente, de 10 a 130 g CO2 eq./km – essa variação está relacionada, essencialmente, à fonte de energia elétrica adotada em cada país do continente europeu.

Os intervalos apresentados são necessários diante das diferentes premissas e parâmetros adotados nesses cálculos. A limitação de dados e o espaço reduzido do artigo também inviabilizam uma apresentação mais detalhada das emissões do “berço ao túmulo” – nesse caso, as emissões dos veículos elétricos tendem a aumentar diante das atividades envolvidas, especialmente na fabricação e no descarte ou na reciclagem das baterias.

De todo modo, os elementos trazidos evidenciam que o foco dos países não deve ser a tecnologia em si, mas sim a combinação de tecnologia automotiva e combustível de baixo carbono (líquido, gasoso ou energia elétrica) que promova a menor emissão de GEE por quilômetro. Veículos com uma maior eficiência energética (menor consumo de energia por quilômetro) só terão uma maior eficiência energético-ambiental (menor emissão de GEE por quilômetro) se utilizarem um combustível com pegada de carbono reduzida (nível de GEE por megajoule reduzido).

Não existe uma solução única
É preciso reconhecer, portanto, que não existe uma solução única para o problema das emissões de GEE no setor de transportes. As restrições, as características e o potencial distinto das diferentes regiões do globo, além do tempo de resposta diferenciado de cada solução tecnológica, determinarão as opções adotadas por cada um dos países, exigindo soluções múltiplas, complementares e adaptadas a cada nação.

A escolha brasileira por rotas tecnológicas diferentes das de outras regiões não impõe qualquer defasagem tecnológica. Ela, na verdade, deve buscar o uso inteligente das vantagens estratégicas do Brasil, segundo o qual os energéticos oriundos de biomassa e a capacidade de geração de energia elétrica limpa permitirão a adoção equilibrada das fontes energéticas e do parque industrial existente na produção e no uso de veículos.

Em muitas regiões do globo, a bioenergia pode ser adotada de maneira integrada aos combustíveis fósseis para reduzir de forma imediata o passivo ambiental da frota circulante (vide o movimento recente do uso de etanol na Índia). Além disso, a ACV evidencia que veículos novos projetados para o uso mais eficiente de biocombustíveis apresentam um potencial de redução de emissões impressionante e custos menores.

No longo prazo, a eletrificação da mobilidade será inevitável, em função da melhor eficiência energética desses motores. O uso de veículos híbridos com combustíveis renováveis e as diferentes opções de veículos elétricos, onde fizerem sentido, serão as formas de encontrar a relação custo-benefício, a velocidade de implementação e as combinações energéticas de baixo carbono mais efetivas em cada região.

No tempo correto, com aplicações adequadas e tecnologias inovadoras, haverá espaço para a convivência de todas as opções para a mobilidade sustentável de longo prazo. Veículos híbridos e elétricos utilizando bioenergia podem ser um fator importante de equalização social e econômica, permitindo que a infraestrutura de reabastecimento dos veículos elétricos dedicados seja implementada onde e quando for necessário, racionalizando investimentos.

O uso de bioenergia onde já é possível e o seu incentivo em países com potencial de produção também podem estabelecer uma maior colaboração entre regiões com níveis tecnológicos e econômicos díspares.

Por fim, cabe destacar a evolução no número e na qualidade dos energéticos fornecidos pela bioenergia. No caso dos veículos leves, além da tradicional produção de etanol a partir de cana-de-açúcar, o País conta, hoje, com a fabricação sustentável de etanol de milho 2ª safra e de etanol de segunda geração (2G). Essa produção possui pegada de carbono auditada e compromisso com desmatamento zero a partir do monitoramento anual realizado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no âmbito da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio).

Soma-se, ainda, a produção de bioeletricidade a partir do bagaço de cana-de-açúcar ou do biogás. A consolidação do biometano fabricado a partir de resíduos industriais gerados na produção de etanol e açúcar também deve permitir o uso desse energético em substituição ao diesel. No ciclo Diesel, cabe mencionar o uso de biodiesel e a combinação de óleo vegetal na produção de óleo vegetal hidrogenado (HVO, na sigla em inglês) ou diesel verde, além da importância da bioenergia como vetor de descarbonização no setor aéreo diante da produção de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês).

Em síntese, é evidente que o Brasil possui características e alternativas de bioenergia não disponíveis em uma grande parte das regiões desenvolvidas do globo. Essa condição traz uma posição privilegiada e exige políticas públicas adequadas, com neutralidade tecnológica, avaliação de emissões no ciclo de vida e diretrizes que explorem por completo o conceito de sustentabilidade.

A consolidação desses elementos em um novo arcabouço legal e regulatório, inclusive com alinhamento das políticas existentes – RenovaBio, Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística e Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) –, pode permitir que o País aproveite as inúmeras oportunidades que serão geradas pelo movimento da economia de baixo carbono nos próximos anos.

*Luciano Rodrigues é diretor de Economia e Inteligência Setorial da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica); Ricardo Abreu é consultor de Mobilidade Sustentável da Unica.

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