Entrevista/Potencial do Brasil para gerar energia a partir do lixo

O Brasil vive um momento decisivo na transição para uma economia de baixo carbono, e a geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos surge como uma das alternativas mais promissoras para unir sustentabilidade, inovação e desenvolvimento econômico. Embora o tema ainda seja relativamente novo no país, o avanço das Usinas de Recuperação Energética (UREs) e dos projetos de biodigestão indica que o setor está prestes a dar um salto estrutural. A implantação da primeira URE do Brasil, em Barueri (SP), marca o início de uma nova etapa para o saneamento e a matriz energética nacional — um passo importante rumo à redução das emissões de metano e à valorização dos resíduos como fonte de energia limpa e firme.

Para compreender melhor os desafios e oportunidades desse setor emergente, o Canal – Jornal da Bioenergia conversou com Yuri Schmitke, presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN). Na entrevista, ele detalha os avanços regulatórios, os benefícios ambientais e econômicos das usinas de recuperação energética e o enorme potencial do país para transformar resíduos em eletricidade, empregos e desenvolvimento regional.

Canal – Jornal da Bioenergia: A geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos ainda é um tema relativamente novo no Brasil. Qual é o estágio atual dessa tecnologia no país e quais os principais avanços recentes?

Yuri Schmitke: O Brasil ainda não conta com nenhuma Unidade de Recuperação Energética (URE) em operação. A URE de Barueri será a primeira do país a entrar em atividade. Além dela, outros projetos estão em fase avançada de implantação, como os de Mauá (SP), com potência instalada de 77 MW; Seropédica (RJ), com 30 MW; Brasília (DF), com 50 MW; e Campinas (SP), com 22,5 MW.

Ainda no estado de São Paulo, estão previstas mais duas Unidades de Recuperação Energética (UREs) até 2028, cada uma com capacidade para processar 1.000 toneladas de resíduos por dia e gerar 30 MW de potência instalada. Há também a possibilidade de implantação de outras duas unidades até 2035, com a meta de desviar até 70% dos resíduos dos aterros sanitários até 2040.

Ao todo, o país já soma cerca de 370 MW de potência instalada projetada para os próximos anos. Esses empreendimentos indicam que o Brasil começa a consolidar um novo modelo de gestão de resíduos, pautado na reciclagem, na compostagem e na recuperação energética.

Canal: Quais são os principais benefícios ambientais e econômicos da recuperação energética de resíduos em comparação ao modelo tradicional de destinação em aterros sanitários?
Yuri: Uma Usina de Recuperação Energética de Resíduos (URE), além de aliviar a pressão sobre os aterros sanitários — muitos já próximos da saturação —, transforma resíduos não recicláveis em energia elétrica renovável e estável.

Do ponto de vista ambiental, o impacto é significativo: essas usinas evitam a emissão de metano — um gás de efeito estufa até 86 vezes mais potente que o CO₂ — e reduzem de forma expressiva o volume de resíduos destinados aos aterros. A experiência internacional, em países como Alemanha e China, demonstra que altos índices de reciclagem caminham lado a lado com o uso da recuperação energética, que atua de forma complementar, e não competitiva, à reciclagem.

Operando sob rigorosos padrões internacionais de controle de emissões, as UREs contribuem para o aprimoramento do saneamento e da saúde pública, além de apoiarem diretamente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente os relacionados à energia limpa, cidades sustentáveis e ação climática.

Canal: Em termos de política pública, o que ainda precisa evoluir para que o Brasil avance na implantação de usinas de Waste-to-Energy (WTE)? E como a ABREN tem atuado junto a órgãos governamentais e reguladores para viabilizar a inclusão da recuperação energética na matriz de energia renovável nacional?
Yuri: Os principais entraves atualmente estão relacionados ao marco regulatório e à previsibilidade contratual. Falta ao Brasil um mecanismo que viabilize a comercialização da energia gerada pelas UREs, nos moldes do que já ocorre em países da União Europeia e na China.

Há também desafios institucionais — relacionados à estruturação de PPPs e concessões municipais — e desafios culturais, decorrentes da desinformação sobre o funcionamento dessas usinas. No entanto, as tecnologias modernas de recuperação energética são seguras, rigorosamente fiscalizadas e amplamente adotadas em países como Alemanha, Japão e Dinamarca.

A aprovação de projetos de lei como o PNRE (PL 924/2022) e o Programa Nacional Metano Zero (PL 3.311/2025) será crucial para criar segurança jurídica, atrair investimentos e acelerar o crescimento do setor.

No caso do Programa Nacional do Metano Zero, a ABREN esteve diretamente envolvida com o projeto. A proposta cria um marco regulatório capaz de integrar a gestão de resíduos à produção de energia renovável, oferecendo as bases para que projetos já prontos – e a maioria engavetados – avancem para a implementação. O PL pode abrir caminho para a viabilização das usinas de recuperação energética (UREs) de resíduos sólidos urbanos no país.

Mais recentemente, a partir de setembro, a ABREN tem tabalhado em programa que integra a segunda edição do programa “European Union Climate Dialogues 2 – EUCDs2”. A ação tem como objetivo promover intercâmbios entre o Brasil e a União Europeia a respeito da descarbonização nos setores da agropecuária e resíduos urbanos, por meio da implementação de políticas públicas para o aproveitamento do biogás e do biometano. Para isso, a ABREN organizou e coordenou uma delegação brasileira oficial que participou, entre os dias 13 a 17 de outubro, da European Biomethane Week 2025, em Bruxelas/Bélgica. Na sequência, foram realizadas reuniões estratégicas e workshops com especialistas das diretorias técnicas da Comissão da UE. Fizeram parte da delegação brasileira representantes do Governo Federal e do Estado de São Paulo.

Canal: Existe um potencial estimado de geração de energia a partir dos resíduos urbanos brasileiros? Qual seria o impacto disso na matriz elétrica nacional e na redução de emissões de gases de efeito estufa?

Yuri: Se considerarmos as 28 regiões metropolitanas do Brasil com mais de um milhão de habitantes — áreas que possuem escala suficiente para a implantação de Usinas de Recuperação Energética (UREs) —, seria possível atender 49% da população ou do resíduo sólido urbano (RSU) gerado nessas localidades. Isso representaria uma potência instalada de 3,3 GW, capaz de gerar cerca de 25 milhões de MWh por ano.

A recuperação energética, contudo, não é apenas uma solução energética. Seu principal objetivo está no saneamento básico, ao reduzir os impactos negativos à saúde pública e ao meio ambiente. Ainda assim, por ser uma fonte firme — com até 95% de fator de capacidade e geração contínua por até 8.500 horas/ano —, contribui de forma decisiva para a estabilidade e confiabilidade do sistema elétrico nacional.

Cada URE funciona como um polo de desenvolvimento regional. Além de produzir energia limpa, gera empregos qualificados nas áreas de engenharia, manutenção e operação, e impulsiona cadeias produtivas ligadas à fabricação de equipamentos e à construção civil.

De acordo com a ABREN, os investimentos previstos até 2040 podem ultrapassar R$ 50 bilhões, com impacto direto na geração de renda, inovação tecnológica e fortalecimento da indústria nacional. Caso todo o potencial das 28 regiões metropolitanas seja aproveitado — correspondendo a 49% do RSU nacional —, estima-se a criação de 200 mil empregos diretos e indiretos ao longo da cadeia de valor.

Além disso, há ganhos indiretos expressivos, como a melhoria da infraestrutura urbana, a redução dos custos com saúde pública e a valorização imobiliária em áreas urbanas saneadas. Segundo dados da OMS, cada R$ 1 investido em saneamento gera R$ 4 em economia nos gastos com saúde pública.

Canal: Além dos resíduos urbanos, há oportunidades também na utilização de resíduos industriais, agrícolas ou lodos de estações de tratamento?

Yuri: Com certeza As rotas tecnológicas de tratamento de resíduos atuam de forma integrada e devem ser escolhidas conforme as características e circunstâncias de cada região.

As Usinas de Recuperação Energética (UREs) são as soluções mais indicadas para regiões metropolitanas com mais de 700 mil habitantes, pois reduzem em até 98% o volume de resíduos enviados aos aterros sanitários. O material remanescente — cerca de 2% — é inerte, sem emissões líquidas ou gasosas, o que torna as UREs a solução mais adotada e eficiente para grandes centros urbanos em todo o mundo.

O Combustível Derivado de Resíduos (CDR), por sua vez, é uma alternativa estratégica para regiões que possuem fábricas de cimento, nas quais o insumo pode ser utilizado como fonte energética complementar. Nesse processo, há maior aproveitamento de resíduos industriais.

Já a biodigestão anaeróbia é a rota tecnológica mais adequada para resíduos orgânicos limpos, devidamente segregados na origem. Essa tecnologia é especialmente eficaz em casos de coleta seletiva eficiente e no tratamento de resíduos de feiras, supermercados, comércio, lodo de esgoto, resíduos agroindustriais, vinhaça, bagaço e torta de filtro da produção de etanol, além de esterco animal.

Canal – Quais são as principais barreiras enfrentadas por investidores e operadores que desejam atuar nesse segmento no Brasil?

Yuri: As principais barreiras para o avanço das usinas de recuperação energética de resíduos (WTE) no Brasil são regulatórias e institucionais, e não tecnológicas. O país já domina a engenharia e possui projetos emblemáticos prontos para implantação, como Barueri e São Paulo. O que falta é a consolidação de um marco legal específico, como o Programa Nacional de Recuperação Energética de Resíduos (PNRE), que criará previsibilidade contratual e um modelo de “balcão único” para a contratação da energia das UREs. Essa estrutura permitirá que prefeituras e investidores privados avancem com segurança. Com a aprovação do PNRE e o fortalecimento do PLANARES, o Brasil poderá alcançar até 3,3 GW de potência instalada em energia firme e limpa até 2040, reduzindo emissões de metano, gerando empregos qualificados e inaugurando um novo capítulo na política de saneamento ambiental.

Já no campo do biogás e do biometano, o Brasil vive um momento de transformação. O biogás ainda enfrenta o desafio de competitividade em relação às demais fontes renováveis, pois carece de um preço de referência que viabilize contratos de longo prazo. Esse ponto está sendo endereçado no Projeto de Lei do Metano Zero (PL 3.311/2025), que propõe mecanismos de precificação e incentivos para a produção de energia elétrica e térmica a partir da biodigestão anaeróbia de resíduos urbanos, agropecuários e industriais. A iniciativa também integra políticas de mitigação de emissões e cria instrumentos de governança que darão escala ao setor.

O biometano, por sua vez, desponta como o combustível do futuro, com papel estratégico na descarbonização dos transportes e na substituição do diesel e do gás natural fóssil. A partir de 2026, entram em vigor o Certificado de Origem do Biometano e o sistema de créditos de carbono regulados (SBCE), que garantirão rastreabilidade, monetização das emissões evitadas e reconhecimento internacional da sustentabilidade do combustível. Esse novo ambiente regulatório criará condições para atrair investimentos, ampliar a infraestrutura de distribuição e consolidar o biometano como uma das principais apostas do Brasil rumo à economia de baixo carbono.

Canal: Na visão da ABREN, quais são as perspectivas para o setor nos próximos anos? O Brasil pode se tornar uma referência latino-americana em geração de energia a partir de resíduos?

Yuri: Nos próximos cinco a dez anos, o setor de energia a partir de resíduos no Brasil deve registrar um crescimento acelerado e exponencial, impulsionado pela combinação de avanços regulatórios, incentivos à descarbonização e pressões por soluções sustentáveis de destinação final.

O Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PLANARES) projeta a instalação de 994 MW em usinas de recuperação energética e dezenas de megawatts em biodigestores até 2040, com destaque para a URE de Barueri (SP) — atualmente em implantação —, que marcará o início de uma nova fase para o setor. Além disso, o plano prevê 69 MW de potência instalada em biodigestão a partir de resíduos sólidos urbanos (RSU), embora o potencial real do país seja ainda maior.

Com a consolidação do Programa Nacional de Recuperação Energética (PNRE) e da iniciativa Metano Zero, é esperado um forte aumento no número de projetos em regiões metropolitanas densamente povoadas. O Brasil tem diante de si uma oportunidade única de alinhar crescimento econômico e sustentabilidade, transformando resíduos em energia, desenvolvimento e qualidade de vida.

A partir de 2026, entrará em vigor o mandato de adição obrigatória de 1% de biometano à matriz de gás natural, com aumento progressivo de 1% ao ano. Essa política, aliada ao Certificado de Origem e ao mercado regulado de créditos de carbono, deve consolidar o biometano como um dos pilares da transição energética nacional, estimulando novos investimentos e expandindo a geração de de energia limpa em todo o país.

Cejane Pupulin-Canal-Jornal da Bioenergia

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