Foto: Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP)

Estudo esclarece o processo de evolução do genoma da cana-de-açúcar

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Com mais de 7 milhões de hectares plantados e uma produção anual de 480 milhões de toneladas, o Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e líder em tecnologia de etanol, conforme informações veiculadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No entanto, apesar da importância do produto na economia brasileira e de todo o esforço de pesquisa já direcionado ao setor, a evolução do genoma da cana-de-açúcar constituiu, até recentemente, um tema pouco entendido. Um novo estudo veio trazer substantiva contribuição ao seu esclarecimento. Trata-se de “Analysis of three sugarcane homo/homeologous regions suggests independent polyploidization events of Saccharum officinarum and Saccharum spontaneum”, publicado em Genome Biology and Evolution.

O estudo foi apoiado pela FAPESP por meio dos projetos de pesquisa “Variação alélica em cana-de-açúcar: quantificação do polimorfismo de sequência” e “Sugarcane genome sequence: plant transposable elements are active contributors to gene structure variation, regulation and function”.

Embora pareça uma planta simples, a cana-de-açúcar moderna possui um genoma extremamente complexo. “O objetivo do estudo foi entender como esse genoma se constituiu e como ele funciona”, disse Mariane de Mendonça Vilela, uma das primeiras autoras do artigo, à Agência FAPESP.

Uma das causas dessa complexidade genômica é a tendência da cana à poliploidia – isto é, à multiplicação de cromossomos homólogos. “O genoma da maioria dos organismos, inclusive do organismo humano, é diploide, ou seja, apresenta duas cópias para cada cromossomo – cada cópia provida por um dos genitores. Porém o gênero Saccharum, ao qual pertencem a cana-de-açúcar moderna e suas espécies antecessoras, é poliploide, com mais de duas cópias de cada cromossomo. Na cana-de-açúcar moderna, o número de cromossomos homólogos varia de oito a 14. E esse número não é o mesmo para todos os cromossomos, o que complica ainda mais o estudo deste genoma”, afirmou Vilela.

Além dessa causa, existe outra, decorrente da própria história do desenvolvimento da cana. “A cana-de-açúcar moderna é um produto da ação humana, resultante do cruzamento da Saccharum officinarum com a Saccharum spontaneum, há pouco mais de um século. O propósito desse cruzamento foi produzir uma planta capaz de reunir as maiores virtudes das duas espécies: a riqueza em açúcar da officinarum e a rusticidade da spontaneum”, disse Luiz Eduardo Vieira Del Bem, que partilhou com Vilela a primeira autoria do artigo.

Depois desse primeiro cruzamento, para aumentar o teor de açúcar, houve novos cruzamentos do híbrido com a officinarum, fazendo com que, geração após geração, a frequência do genoma da officinarum aumentasse em relação à do genoma da spontaneum, chegando atualmente, segundo ele, à proporção de 80% para 20%. “Um ‘efeito colateral’ desses cruzamentos sucessivos foi que cromossomos das espécies parentais acabaram sendo perdidos e se recombinando entre si no processo, resultando daí uma complexidade genômica ainda maior”, explicou Del Bem.

Assim, entre variedades distintas da cana moderna, é possível encontrar conteúdos cromossômicos diferentes, de 80 a 120 cromossomos. Muitas vezes, essas variedades estão plantadas a poucos metros de distância, uma de um lado e a outra do outro lado da estrada que atravessa os canaviais.

O vegetal mais próximo da cana é o sorgo. Os dois gêneros se separaram em uma época compreendida no intervalo de 7 milhões a 9 milhões de anos atrás – mais ou menos o mesmo período no qual o gênero Homo, ao qual pertence o homem moderno, se separou do gênero Pan, ao qual pertence o chimpanzé. Assim como o homem, o sorgo é diploide, ao passo que o gênero Saccharum desenvolveu a já mencionada propensão à poliploidia – que pode ocorrer tanto nos cruzamentos de uma espécie com outra quanto nos cruzamentos dentro de cada espécie.

“O que nós conseguimos descobrir em nosso estudo foi que ocorreram pelo menos duas rodadas de autoduplicação cromossômica na espécie officinarum depois que ela se diferenciou da espécie spontaneum, entre 2,5 e 3,5 milhões de anos atrás, e antes que as duas espécies fossem cruzadas pelo homem, há pouco mais de um século. No caso da espécie spontaneum, o cenário é mais complicado, porque o número de cromossomos é muito variável. Mas também descobrimos que ocorreram autoduplicações no mesmo período”, relatou o pesquisador.

Uma das linhas de investigação do estudo foi entender como o genoma se organiza para acomodar e harmonizar essas multiplicações de cromossomos homólogos. “Quando o número de cromossomos aumenta, o número de genes aumenta proporcionalmente. Quais os mecanismos desenvolvidos pela planta para integrar e estabilizar essa grande quantidade de genes? Esta foi a pergunta que orientou essa linha específica de investigação”, disse Vilela.

“Alguns genes, especialmente os de regulação, que controlam, por exemplo, o momento de florescimento da planta, ou a resposta da planta ao estresse ambiental, precisam ter uma expressão muito fina, muito bem definida, senão acabam causando mais danos do que benefícios. E realmente nosso estudo confirmou isso. Observamos que, apesar de a cana-de-açúcar ter, no mínimo, oito cópias de cada cromossomo, nem todas elas se encontram ativas ao mesmo tempo. Essa é uma informação que poderá, eventualmente, ser utilizada em alguma aplicação tecnológica futura”, sublinhou a pesquisadora.

As datações obtidas pelo estudo, revelando que as autoduplicações cromossômicas das espécies genitoras ocorreram depois de sua diferenciação, entre 2,5 e 3,5 milhões de anos atrás, basearam-se na chamada “teoria do relógio molecular”. Del Bem explicou, em linhas gerais, o procedimento.

“No código genético, existem várias trincas de nucleotídeos que codificam aminoácidos. Há 64 trincas possíveis, mas apenas 20 aminoácidos. Conclui-se, então, que existem mutações que não afetam a função. A base muda, mas o aminoácido codificado é o mesmo, porque trincas diferentes produzem aminoácidos iguais. Essas mutações são denominadas ‘substituições sinônimas’. A seleção natural é incapaz de ‘enxergá-las’, porque sua ocorrência não altera a proteína. Assim, a seleção natural nem determina que aumentem de frequência por serem benéficas, nem que sejam descartadas por serem prejudiciais. Essas substituições, que ficam flutuando em frequência nas populações, constituem o ‘tique-taque’ do ‘relógio molecular’. Baseados na taxa de mutação em gramíneas, que já havia sido determinada experimentalmente, e na comparação das sequências das regiões genômicas homólogas que analisamos, conseguimos calcular o número de gerações em que se duplicaram; e, por decorrência, o intervalo de tempo das duplicações cromossômicas”, resumiu.

“Nossas conclusões basearam-se na análise de três genes que – temos quase certeza – são únicos, com apenas uma cópia nos genomas das gramíneas em geral. Um deles é a quinase TOR, que controla o crescimento em resposta à nutrição. Outro é o gene Leafy, que controla o florescimento. E o terceiro é o fitocromo C, que controla a fotorrecepção. São três genes cruciais para o desenvolvimento da planta. E que, exatamente por isso, precisam ser regulados de maneira fina no genoma”, comentou o professor Michel Vincentz, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), que coordenou o estudo e também assina o artigo publicado em Genome Biology and Evolution.

“A grande surpresa foi descobrir que, devido ao complexo processo de autopoliploidização das espécies precursoras, genes homólogos passaram a se expressar de maneira diferente. É um resultado novo na literatura que mostra que a complexidade do genoma da cana é muito maior do que imaginávamos. Parece que, em algum momento da evolução desse genoma, houve uma invasão dos loci cromossômicos por transposons [sequências de DNA capazes de se movimentar de uma região para outra do genoma]. E, quando o transposon se insere em um locus, ele muda a expressão desse locus”, concluiu o coordenador.

Unicamp

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